É incrível como James
Barrie conseguiu colocar em uma história infantil algumas das grandes buscas de
encontro e distanciamento do ser humano, das pessoas jovens e adultas, dos que
se acreditam vividos, dos que estão construindo sua personalidade, inclusive
dos que se confirmam como já conformados. Não entrarei na clássica, e tão usada
(ainda que, muitas vezes, sem profundidade) em muitas conversas, “síndrome de
Peter Pan”, mas sim citarei várias vezes o personagem principal dessa história
e, como seria de se esperar, um de meus personagens preferidos da literatura. Me
admira sua pessoa não pelo fato de ele não querer crescer, mas sim pelos
efeitos desse desejo, por tudo o que ele vive devido ao desejo de ser sempre criança.
Por ser sempre uma criança, Peter não só deixa de crescer, mas também deixa de
ter um passado, pois quem tem um passado tem uma história, e quem tem uma
história cresce. Pan vive muitas aventuras e gosta muito de ouvir as histórias
que Wendy conta sobre ele, porém suas aventuras deixam de ser histórias e se
tornam estórias, sua vida se torna ficção para ele mesmo, seu passado se torna
uma junção de palavras mágicas sobre um personagem magnífico. Peter Pan se
admira por cada uma de suas aventuras a ponto de ver nesse herói uma pessoa
diferente de si mesmo.
Peter se idealiza, se
torna alguém tão importante para si mesmo que tem dificuldade em estabelecer
uma relação de igual com outras pessoas. Com os meninos perdidos ele é o líder,
o chefe, o capitão, não um irmão. Com Wendy, as coisas ficam complicadas quando
ela quer que ele seja um pai e ela uma mãe para os meninos. Ele não quer ser um
pai para seus companheiros, também devido a ferida em relação a ter sido
abandonado quando bebê, mas... ele lembra disso? ele tem alguma memória desse
corte com seus pais? de quando voltava uma e outra vez até a janela da sua casa
para ver sua mãe, até o dia que encontrou grades na janela? Ou seja, ele tem lembranças...
mas preferiu guardar somente umas poucas lembranças ruins, e isso o faz criar
barreiras. Peter se sente separado do mundo real, assim como suas estórias já
não são parte de sua história. Sua memória e, assim, seus vínculos vão se
fragmentando, se separando de qualquer realidade, tudo se torna algo diferente.
Seria essa a graça de sua vida? Encontrar uma liberdade na falta de vínculos e
passado...
Para Peter, não tem
sentido querer construir uma história, já que isso significaria poder sofrer
uma nova rejeição, como a que sofreu de seus pais, ou ainda pior: ter que
rejeitar alguém e já não ser importante para esse alguém. Teria algo pior do
que não sentir-se amado? Será que Pan poderia viver sem ser admirado? Existe um
sentimento mais triste do que quando uma pessoa se sente sem valor? Peter “deu
a volta por cima” dessa possibilidade com uma proteção fantasios ao ponto de
que ele mesmo terminou se tornando uma “fantasia real”. Vivemos de fantasias ou
por fantasias ou com fantasias ou, ainda, em com o desejo de que tudo seja uma
fantasia?
A vida de Peter são
páginas, contos, extratos irreais dessa mesma realidade descompacta. Sua vida
não tem um sentido linear, não tem memórias pontuais onde atar-se, não tem lugares
portuários onde se sabe que pode jogar sua âncora, não tem pessoas amadas onde
se pode voltar uma e outra vez para abraçar... A vida fica não possui um
sentido mais que o de viver suas aventuras, ao ponto de que até mesmo “morrer
seria uma aventura”... Tudo e nada se dão as mãos, tornando-se uma só criatura,
em um caminho onde seus próprios passos apagam suas pegadas imaginárias entre
as estrelas rumo à Terra do Nunca.
O Nômade.