sábado, 4 de agosto de 2018

Segunda estrela a direita e até amanhã de manhã


É incrível como James Barrie conseguiu colocar em uma história infantil algumas das grandes buscas de encontro e distanciamento do ser humano, das pessoas jovens e adultas, dos que se acreditam vividos, dos que estão construindo sua personalidade, inclusive dos que se confirmam como já conformados. Não entrarei na clássica, e tão usada (ainda que, muitas vezes, sem profundidade) em muitas conversas, “síndrome de Peter Pan”, mas sim citarei várias vezes o personagem principal dessa história e, como seria de se esperar, um de meus personagens preferidos da literatura. Me admira sua pessoa não pelo fato de ele não querer crescer, mas sim pelos efeitos desse desejo, por tudo o que ele vive devido ao desejo de ser sempre criança. Por ser sempre uma criança, Peter não só deixa de crescer, mas também deixa de ter um passado, pois quem tem um passado tem uma história, e quem tem uma história cresce. Pan vive muitas aventuras e gosta muito de ouvir as histórias que Wendy conta sobre ele, porém suas aventuras deixam de ser histórias e se tornam estórias, sua vida se torna ficção para ele mesmo, seu passado se torna uma junção de palavras mágicas sobre um personagem magnífico. Peter Pan se admira por cada uma de suas aventuras a ponto de ver nesse herói uma pessoa diferente de si mesmo.
Peter se idealiza, se torna alguém tão importante para si mesmo que tem dificuldade em estabelecer uma relação de igual com outras pessoas. Com os meninos perdidos ele é o líder, o chefe, o capitão, não um irmão. Com Wendy, as coisas ficam complicadas quando ela quer que ele seja um pai e ela uma mãe para os meninos. Ele não quer ser um pai para seus companheiros, também devido a ferida em relação a ter sido abandonado quando bebê, mas... ele lembra disso? ele tem alguma memória desse corte com seus pais? de quando voltava uma e outra vez até a janela da sua casa para ver sua mãe, até o dia que encontrou grades na janela? Ou seja, ele tem lembranças... mas preferiu guardar somente umas poucas lembranças ruins, e isso o faz criar barreiras. Peter se sente separado do mundo real, assim como suas estórias já não são parte de sua história. Sua memória e, assim, seus vínculos vão se fragmentando, se separando de qualquer realidade, tudo se torna algo diferente. Seria essa a graça de sua vida? Encontrar uma liberdade na falta de vínculos e passado...
Para Peter, não tem sentido querer construir uma história, já que isso significaria poder sofrer uma nova rejeição, como a que sofreu de seus pais, ou ainda pior: ter que rejeitar alguém e já não ser importante para esse alguém. Teria algo pior do que não sentir-se amado? Será que Pan poderia viver sem ser admirado? Existe um sentimento mais triste do que quando uma pessoa se sente sem valor? Peter “deu a volta por cima” dessa possibilidade com uma proteção fantasios ao ponto de que ele mesmo terminou se tornando uma “fantasia real”. Vivemos de fantasias ou por fantasias ou com fantasias ou, ainda, em com o desejo de que tudo seja uma fantasia?
A vida de Peter são páginas, contos, extratos irreais dessa mesma realidade descompacta. Sua vida não tem um sentido linear, não tem memórias pontuais onde atar-se, não tem lugares portuários onde se sabe que pode jogar sua âncora, não tem pessoas amadas onde se pode voltar uma e outra vez para abraçar... A vida fica não possui um sentido mais que o de viver suas aventuras, ao ponto de que até mesmo “morrer seria uma aventura”... Tudo e nada se dão as mãos, tornando-se uma só criatura, em um caminho onde seus próprios passos apagam suas pegadas imaginárias entre as estrelas rumo à Terra do Nunca.

O Nômade.

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